sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O vazio entre dois livros


Como faz tempo que não escrevo por aqui, vou soltar as palavras devagar. Pra não me atropelar, não afobar. Escrever é que nem colocar meia quando a gente é criança: com pressa, enrola tudo e temos de começar de novo.

Bom, para começar, vou citar os dois livros que fizeram companhia para mim neste meio tempo que fiquei sem subir ao palco. Foram eles os ilustres “Grande Sertão: Veredas” e “Tao Te Ching”. Escritos por João Guimarães Rosa e Lao Tse, respectivamente. Duas obras primas. Dois livros e muito mais que mil vidas de sabedoria.

Eles falam, cada qual à sua maneira, do que é a vida quando você abre o foco. Quando a gente olha uma coisa de perto não vê o todo. Tem até aquela teoria que a gente não vê os rostos por completo. A gente vê todos os detalhes e depois monta dentro da cabeça o rosto da pessoa. Só que normalmente ninguém consegue fazer isso com a vida, com o mundo. Nos apegamos aos detalhes, o que foi uma semana, o que foi um dia, o que é um evento. É difícil olhar para tudo que nos acontece e ver mecanismos genéricos que se repetem ao longo de nossa vida. No máximo um “sempre me fodo quando namoro mulheres mais novas” ou “nunca consigo me dar bem em empregos formais demais”.

O Tao é uma religião. E mais. E não só. Este é um livro para se ler com tempo. Sem necessidade de entender cada página de prima. Pelo contrário, eu gosto de tomar bem 40 minutos para ler cada página. Você percebe que os conceitos que estão no Tao são reproduzidos em vários livros, incluindo a própria bíblia. Mas se cada livro é um tipo diferente de pão, como croissant, francês ou italiano, o Tao é a própria massa. Não tem o sabor ou a forma definidos. Só a substância. É algo difícil de explicar como deve ser difícil para você que lê agora entender. Mas um exemplo gostoso:

Una oito raios a um eixo e você terá uma roda.
A utilidade da roda está no vazio.
Monte com o barro uma panela.
A utilidade da panela está no vazio.
Assim, da existência nasce o valor.
Da não-existência, o vazio, nasce a utilidade.


Por isso aconselho você a tentar por si mesmo. Leia uma página qualquer do meio e veja como ele fala de um aspecto da vida sem ser específico demais. No fim das contas, você percebe que ele fala de sua vida, e nenhuma outra, ou todas as outras.

Lendo o Sertão, descobri muitos pedaços do Tao. Porque o Tao está presente em quase todas as histórias por um ponto de vista, e no Sertão ele explica muita coisa. O Sertão é sobre como os conceitos de bem e mal são só a primeira milha andada na viagem de auto-descobrimento. Exemplo: todos são bons e maus. Mas, não sendo ninguém 100% bom, então somos todos maus. Mas se todos somos maus, ninguém é mau, porque você só é algo quando existe um exemplo oposto. Então o que somos é o próprio Sertão, onde não existe o bom e o mau. E o Sertão, infinito, está dentro de nós. E por isso nossa busca na vida nunca termina. Fora isso, o livro é importantíssimo para você entender o que é a língua. João, o autor, falava 14 línguas. Escreveu um livro que todo mundo que fez cursinho conhece pela “complicação”. Mas o livro, eu entendi, revela os mecanismos da linguagem. Leia, mesmo sem entendê-lo a princípio. Você perceberá que usamos a nossa língua de uma maneira muito, muito limitada. Quase não a usamos na verdade. É um livro que me delicia ler. Descobrir os absurdos de sentidos possíveis com as palavras – e suas deturpações intencionais. Tem muito a ver com um dos meus posts anteriores (procura por aí no blog porque eu não manjo muito de ficar fazendo link) quando eu falava sobre ler català.

Foi por essas andanças, mundos sem fim de ideias e palavras, que me perdi. Nesses tempos. Não peço desculpas, estou é grato, encontrei mais de mim. E sei que as palavras podem ser vazias, essa é sua utilidade, então adorarei discutir-explicar melhor ao vivo.

Agora estou de volta, para varrer o chão dando a conta desta casa.
E, como sempre, as visitas são mais que bem-vindas.

7 comentários:

agente laranja disse...

Conhece O Tao da Física? A ciência contemporânea tem muito disso. Você lê umas coisas que as pessoas escrevem sobre partículas, e você sente que as conhece, como se fossem seus amigos, como se fosse você. É muito legal.

Anônimo disse...

Wolvie, muito bom, não tinha lido nenhum texto seu parecido com uma resenha, mas sempre achei que vc tivesse essa manha.
Welcome back.

Fabio Ciccone disse...

Excelente texto, excelente mesmo. E sobre GS:V, tenho quase certeza de que não é prosa. É poesia. Um longo poema de centenas de páginas, escrito em versos longuíssimos.

Leia-o com sotaque, que se tentar ler em paulistês não se entende nada. Estou parado no primeiro quarto dele há tempos, agora você me deu vontade de retomá-lo.

Anônimo disse...

Caí aqui ao acaso, procurando esse texto do Tao.

Bjs!

Tiago Marinho disse...

Adorei o texto. Só vi o post hj. Acho que nas pausas entre um post e outro seu eu perdi o costume de checar o blog todo dia. Concordo muito com ele, ja li os dois livros e não tinha pensado assim. Muito bacana.

Um adendozinho pra vc. Se vc quiser achar o link permanente de um post seu, é facil: vc acha o post que esta ali organizado pela data (isso vc sabe) abre ele. Depois clica no titulo no começo do post ou na hora no final do post, vc vai ser levado pra uma página só com esse post.
No caso o texto sobre a língua que vc citou, o link seria esse aqui

http://subonessepalco.blogspot.com/2008/07/outra-lngua.html

Beijo meu irmão

Vitor disse...

A forma é o vazio, e o vazio é a forma.

Unknown disse...

Estou pra começar o meu Grande Sertão há tempos, mas agora já vou "ler com outros olhos". Trocadilhos infames hehehe