quarta-feira, 26 de maio de 2010

Encontros no caminho


Vem acontecendo de novo aquele lance de encontros improváveis.
Voltei a acreditar nisso.
De encontrar pessoas que a gente jura que nunca mais encontraria e, de repente, sorte pura, você cruza numa rua diagonal de paralelepípedos voltando para casa.
Li agora mesmo sobre uma conhecida que encontrou a Cat Power na porta do Ó do Borogodó. A gringa lhe pede um cigarro, ela oferece e tals, comenta "Você me lembra a Cat Power, sabia?" e daí a resposta "Prazer, Cat."
Talvez isso tenha a ver também com eu estar começando o caminho de On The Road. Isso vai pedir uma daquelas minhas divagações.

Tinha aqui no meu trampo um redator muito gente boa (aliás, todos os redatores daqui são gente boa, embora cada um bem a seu modo). Mas esse cara era uma daquelas figuras únicas. Bem um personagem beat, in a certain way. Era um negrão com um sorriso de pitbull que começava em uma orelha e terminava na outra. Acho que um dos caras mais humildes que conheci na minha vida inteira. E eu absolutamente amo a humildade. Gosto tanto que ela me escapa, muitas vezes, como é típico dos amores. Pois esse cara entrou na agência inegavelmente menos experiente que os outros três redatores. Mas ele não só sabia disso como fez disso sua meta: estudava com cada um de nós um tanto, aprendia truques - e a gente sabe que a humildade é a melhor ferramenta para aprender. E vai e faz e o cara se tornou o melhor de nós. Não que ele admitisse isso, mas ficou claro pra mim. Ele se esforçava atrás da grande ideia, enquanto eu a chamo como se chama um gato. Esse redator era muito louco. Mesmo. Ele dava cambalhotas no meio do departamento, fingia que era soldado e saia rastejando com um cartucho de impressora empresarial que parecia uma escopeta, tudo isso sempre declamando uma narração. Para mim, a narração era a malhor parte da história toda. Tinha gente que curtia as caretas, as danças, mas eu ficava atento nas narrações, na oralidade. Porque esse cara tinha um bendito caderno. Caderno de capa mole, espiral, deve custar uns quatro reais na papelaria, inteiro preenchido por uma letra frenética de quem escreve sem muito tempo para pensar em como organizar ou deixar espaços em branco para depois se encontrar no meio daquilo tudo. Ele escrevia feito um louco, mas o conteúdo era genial. Agora vou chutar minha modéstia pra casa do caráter e falar: quase todo mundo lia ou ouvia ele falando aquilo e falava rindo "esse negão é louco, hahahaha". Mas eu ouvia e lia aquilo e sacava: aquilo tinha a pegada de poesia beat. Era isso, poesia marginal, textos de loucura de cara que tá na rua, vem pra agência não pra viver mas pra juntar sua grana. Aquele cara era um fucking beat na essência e eu percebi isso. Não expliquei pra mais ninguém porque acho egocentricamente que só eu entenderia (e talvez mais o diretor de arte que me surpreende por saber de tudo). Mas esse é personagem pra outra história. E esse redator, quando alguém pegava seu caderno e começava a rir das loucuras escritas, tomava uma atitude genial. Em vez do esperado "tomar o caderno e tentar esconder", ele simplesmente pedia o caderno e começava a declamar, só batendo o olho vez ou outra porque, no íntimo, já sabia de cór o texto que o curiosos lera. Ele soltava as palavras de uma maneira teatral e escrachada, mas isto tenho de certo que era pra agradar o povo, dar o pão e circo na linguagem que mais se encaixa. Aposto que ele não as escrevia para ler de maneira jocosa, mas com um ar de visão sã no meio de uma baita loucura. Daí um dia eu estou voltando do almoço e passo numa banca. Vejo, naquele porta livrinho de dez pilas - isso é uma genialidade, mas ninguém repara porque é como se estivesem vendendo originais do Machado de Assis no meio das Contigos e Boa Formas. Eu parei porque vi um amarelinho que me encarou e falou "Não finge que não me viu, porque eu te vi e tô olhando pra tua cara agora." Na capa um Cadillac vermelho e o nome "On The Road". Insight de pedestre absorto, comprei na hora. Escrevi uma dedicatória na capa que não sei se foi pretenciosa ou pedante - eu incorro nos dois erros com a mesma frequência com que tomo café atualmente - e presenteei o cara na volta do almoço. Aquele cara tinha de ler aquilo. Distoa completamente de tudo que a gente vive nessa criação, a busca pela piada sexual mais rasa e a imitação mais folclórica, mas naquele momento eu sabia que aquilo era um resumo do que eu via nele e do que ele via em mim. Ele costumava me falar "Porra, Robert, tu é um cara inteligente, você é muito cerebral, é diferente da pegada geral, curto isso em você." Então pronto, entreguei pra ele um livro que tinha a essência dessa admiração intelectual mútua entre dois caras meio perdidos. Ele recentemente mudou de trampo, acho que ainda vou encontrá-lo muitas vezes, se Deus quiser e a preguiça não impedir.

Daí tou eu pssando na frente de uma banca e vejo o mesmo livro. E o livro novamente me olha de frente e me diz "Ok, você já me comprou como presente mas ainda não me teve, não transou comigo." Aceitei o desafio, na exata mesma banca peguei aquele novo On The Road, capinha amarela, e levei comigo. Comecei faz pouco e já vi que é sobre tudo que eu muito pretensamente sempre falei nos quatro cantos que era minha essência. "Eu sou meio beat", "curto os loucos", "Deus ouve jazz" e tudo isso que todo mundo já ouviu quando tento parecer mais profundo ou poético. É sobre isso. E eu sei que vou ter de mergulhar nele e sair outro, é o curso natural. Muita gente que leu On The Road mudou pra sempre. Bob Dylan só virou o Bob Dylan porque leu e depois fugiu de casa. O movimento hippie não teria acontecido se o livro não tivesse sido lançado anos antes. Sinceramente, uma puta importância. Um livro sobre pessoas que têm histórias a contar e ouvir.

E mal comecei a ler o livro e percebi nele os encontros espontâneos no meio da rua com pessoas geniais. Dessas que você encontra de repente e sabe que pode começar uma vereda nova na vida. Como o redator que citei e ainda não entendi por que não falei o nome dele até agora: Marcio Graciano. Gênio puro, esse cara é um jazz bebop, coisa que eu adoro ser, mas nem sempre consigo.

O personagem principal é um cara que escreve, primeiro passo ideal para eu decidir colocar isso no papel imaginário desse fundo branco de janela de postagem do Subo Nesse Palco. O fato é que eu vou ler esse livro porque uma vez o Brunão falou que eu era o Dean, o personagem fascinante com quem o protagonista compartilha o livro. Here we go, comecei o post só com essa primeira frase que me veio na cabeça. Eu estava no busão vindo para o trabalho. Ele demora um pouco mais, mas isso é uma sorte quando você tem um livro, sobra mais tempo e o caminho tem menos caminhadas do que o caminho do trem. E eu lá, com o livro na mão, o fato de ter encontrado ontem na rua uma pessoa que nem conheço direito mas que achei que nunca mais veria na vida - errei, vi ontem e a pessoa me viu também - e do nada me veio só esse começo de post. Vou ser franco, não sei se reproduzi o começo com as palavras que me pareceram tão geniais quando eu esava sentado naquele último banco, o que balança mais. O Brunão sempre me diz que o legal do fundo do busão é que a viagem fica groovie. Fato tão verdadeiro que depois da citação eu sempre prefiro ir em pé no fundo quando estou sozinho.

Logo mais parto para uma viagem. Não sei se vou conhecer muitas pessoas por lá, mas o cenário é o ideal. E, como todas as viagens desse estilo que faço, espero uma transmutação. Na última dessas que fiz, fui querendo um tempo do mundo que estava me deixando kinda nuts e voltei diferente. Não absolutamente outro, como um pode esperar, mas pelo menos com uma visão bem outra - até do jeito como as pessoas andam nas ruas por aqui. Agora vou pra outro lugar em que nunca estive antes, de novo para tomar um tempo para repensar meu mundo. Aquele negócio de tomar um copo de água para apagar o gosto do vinho anterior antes de experimentar o próximo. Vou nessa segunda, volto depois de duas semanas. E quero voltar não completamente diferente, mas com um traço que acho que não tenho exercido há algum tempo: a sensibilidade para encontrar, no meio da multidão, pessoas ímpares. Era isso que eu tinha quando eu era mais modesto. Na época em que eu conheci tantas pessoas geniais - o que culminou em eu aprender tanto e ficar mais certo de mim como sou agora. Vai ver que é um processo daqueles: você é plano mas procura saber, fica mais culto e fica cego, sofre pela limitação e se percebe plano, daí procura saber mais.

Talvez eu escreva de lá, durante a viagem. Talvez eu só escreva de novo quando eu terminar On The Road. Foi-se a época em que eu tinha certeza de cumprir promessas (quando eu, inocente e inabalável, falava "minha palavra é maior do que eu mesmo").

Só prometo isso: vou continuar me surpreendendo com as pessoas que encontro (e reencontro), e vou caminhar sempre nessa direção.

4 comentários:

Luiz Sócrate disse...

Nostalgia do Marcião…

Vá lá, on the road, de encontro àquilo que te busca. Mas vê, não se deixe confundir, todas as estradas levam para dentro. As pessoas mesmo não mudam, se desdobram.

Anônimo disse...

temos aqui um cronista que respeita a história e seus detalhes.

Kerouac te espera de braços abertos.

Bigode disse...

Esses encontros são do caralho, como contei lá em casa, encontrei o mesmo maluco barbudo na terça e na quarta-feira, sendo que no segundo dia eu estava fazendo um caminho totalmente novo. O texto é animal, dá vontade de conhecer o redator.

Teca disse...

só pra registrar que o Wolvie é sempre um achado, seja no texto, seja no tumblr; resultado = sou, como sempre, fã.